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Assembleia da Campanha Global pela Educação: Johannesburg

Educação Transformadora: escapando das armadilhas da pobreza

Leonardo Garnier

Conselheiro Especial, Secretaria-Geral da ONU, Cimeira da Educação Transformadora

1. O desafio que enfrentamos: uma crise de equidade, de qualidade e de relevância   

A pandemia do COVID atingiu os sistemas educacionais com um golpe terrível em todo o mundo, mas, enquanto esforçamo-nos para a recuperação do impacto educacional da pandemia, seria um erro simplesmente recuperar as perdas e voltar para onde estávamos em 2019.

A verdade é que mesmo antes da pandemia a educação enfrentava uma crise global que é, na verdade, uma crise tripla: uma crise de equidade, pois milhões estão fora da escola; uma crise de qualidade, pois muitos dos que estão na escola não estão a aprender nem o básico; e, claro, uma crise de relevância, pois muitos sistemas educacionais não estão a equipar as novas gerações com os valores, conhecimentos e habilidades de que precisam para serem cidadãos activos no mundo complexo e em rápida mudança de hoje.

2. A educação que precisamos: uma educação para a vida

Para enfrentar esta crise, devemos reimaginar e transformar a educação para que ela apoie os alunos em quatro capacidades principais:

Primeiro, eles devem aprender como aprender. Todos os alunos devem desenvolver a sua capacidade de ler e escrever, de identificar, compreender e comunicar de forma clara e eficaz. Eles também devem desenvolver habilidades e conhecimentos numéricos, digitais e científicos. A educação também deve incutir neles a curiosidade, a criatividade e a capacidade de pensamento crítico e de cultivar habilidades sociais e emocionais, empatia e gentileza. Isto é essencial para desenvolver sua capacidade de lidar com a complexidade  num mundo cada vez mais incerto.

Segundo, eles devem aprender a fazer. À medida que o mundo do trabalho passa por mudanças rápidas e fundamentais, também deve mudar a educação, a fim de preparar todas as pessoas para os desafios do futuro – que inclui o verde, o digital e a economia de cuidados (care economy) – e oferecendo-lhes oportunidades de aprendizagem contínua, tanto em educação formal e informal.

Terceiro, e este é um desafio maior para os sistemas educacionais, eles devem aprender a viver juntos. Num mundo de desigualdade crescente, tensões emergentes, confiança desgastada, cultura democrática enfraquecida e uma crise ambiental dramática, a educação deve  ajudar-nos a viver melhor uns com os outros e com a natureza. Isto tem a ver com a ética, a igualdade e a justiça; com responsabilidade cívica, democracia e direitos humanos; com o respeito, a compreensão e o gozo da nossa rica diversidade humana; e, claro, com nossa capacidade e compromisso activo como cidadãos globais com os objectivos de enfrentar a pobreza e a desigualdade e promover um desenvolvimento mais sustentável.

De particular importância aqui é o respeito descarado pelos direitos humanos e a busca pela igualdade de género. Isto requer um currículo sensível ao género que promova a educação sexual e afectiva, aborde preconceitos, normas ou estereótipos baseados em género, capacite e prepare os alunos para combater a violência contra mulheres e pessoas sexualmente diversas e garantir saúde sexual e reprodutiva adequada para todos.

Finalmente, e isto é algo que os sistemas educacionais muitas vezes esquecem ou subestimam, eles devem aprender a ser (serem eles mesmos): O propósito mais profundo da educação reside precisamente em aprender a viver bem, em incutir nos alunos os valores e as capacidades para ter uma vida significativa, para desfrutar desta vida e vivê-la plenamente. A educação deve expandir o potencial de criatividade e inovação de cada aluno; sua capacidade de desfrutar e de expressar-se através das artes; sua consciência da história e da diversidade de culturas; e sua disposição para uma vida saudável, para a prática de actividades físicas, jogos e desporto.

3. Transformação das escolas, professores e recursos pedagógicos

Para atender a estes propósitos mais elevados de educação, devemos transformar o currículo e a pedagogia, mas, como argumentamos na Cimeira, também precisamos transformar três elementos essenciais dos nossos sistemas educacionais.

Primeiro, escolas. A educação não acontece no vácuo. Se quisermos resolver a crise de equidade que enfrentamos na educação, devemos transformar as escolas em locais de aprendizagem seguros, saudáveis, inclusivos e estimulantes. As escolas do futuro, sejam elas formais ou informais, físicas ou virtuais, não devem excluir ninguém, devem acolher todas as pessoas e fazê-las sentirem-se acolhidas, cuidadas, protegidas, estimuladas e apoiadas nas suas necessidades e segundo as suas capacidades. A escola deve tornar-se o espaço e o tempo da integração humana, da nossa convergência na nossa rica diversidade humana, sem discriminação de nenhum tipo, escárnio, abuso ou agressão.

Segundo, professores. Para transformar a educação, devemos apoiar os professores, para que eles também transformem-se em agentes de mudança. Os professores devem tornar-se produtores de conhecimento, facilitadores e guias na compreensão de realidades complexas. Eles devem ser treinados e capacitados para transcender do passivo ao activo, do vertical e unidireccional ao colaborativo. Devem promover a aprendizagem baseada na experiência, na investigação e na curiosidade; desenvolver a capacidade, a alegria e a disciplina para a resolução de problemas. Eles também devem orientar seus estudantes na aprendizagem de como cuidar uns dos outros, enfrentar e resolver conflitos pacificamente e desfrutar uns dos outros na sua diversidade.

E terceiro, a revolução digital. Se bem aproveitada, a revolução digital pode ser uma das ferramentas mais poderosas para garantir educação de qualidade para todos e transformar a forma como os professores ensinam e os alunos aprendem. Mas se não – como vimos durante a pandemia – poderia exacerbar as desigualdades e dividir-nos em bolhas cada vez mais intolerantes.

O problema aqui é que estes são bens públicos típicos porque, embora exijam um esforço significativo e um alto custo fixo para serem produzidos, uma vez produzidos, podem ser amplamente utilizados por uma quantidade crescente de professores e alunos em todos os lugares, com muito pouco ou sem custo adicional. Se deixados para o mercado, tais recursos iriam tornar-se artificialmente escassos e bastante caros. É por isto que devemos transformar efectivamente os recursos digitais de ensino e aprendizagem em bens públicos globais, para que seu financiamento, criação (design), produção e distribuição sejam organizados de forma a garantir o acesso livre e aberto de professores e alunos em todo o mundo, a permitir recursos de aprendizagem digital para promover efectivamente o compartilhamento do conhecimento humano a partir de uma perspectiva intercultural.

4. Investir mais, mais equitativamente e mais eficientemente na educação

Tudo isto requer investimentos significativos, e o facto é que, no mundo de hoje, não estamos a investir o suficiente em educação, não estamos a investir equitativamente em educação, nem estamos a investir de forma eficiente.

Hoje, investimos cerca de US$ 5 trilhões em educação no mundo. Em média, isto representa cerca de 6% do PIB global. Mas as médias enganam. Os países de alta renda respondem por 63% do investimento global em educação, mas atendem apenas a 10% da população mundial em idade escolar. Em seguida, temos os países de renda média alta, com 29% do investimento educacional global e 15% da população em idade escolar. Por outro lado, encontramos países de renda média-baixa que, com apenas 8% do investimento global, devem educar 50% da população mundial em idade escolar. Finalmente, os países de baixa renda tentam educar 25% da população mundial em idade escolar com apenas 0,6% do investimento global em educaçãoi[i]. Aproximadamente, isto significa que estamos a educar  três quartos das crianças do mundo com menos de um décimo do investimento global em educação.

Isto obviamente significa que os recursos que estamos a investir por pessoa em idade escolar são muito desiguais em todo o mundo, que reproduz assim a desigualdade educacional. Mais ou menos, até 2020, o gasto per capita em educação foi superior a US$ 8.000 por ano em países de alta renda, cerca de US$ 1.000 em países de renda média alta, apenas US$ 300 por ano em países de renda média baixa e apenas US$ 50 por ano em países de baixa rendaii[ii]. Isto é cerca de um dólar por semana. Não é preciso ser um especialista para entender o que isto significa.

Nos países de renda baixa e média-baixa, o desafio do investimento educacional só pode ser resolvido se o esforço nacional for substancialmente complementado pela cooperação internacional. Na maioria dos países, no entanto, este investimento deve ser financiado com recursos nacionais, porque faz sentido fazê-lo.

Investir em educação deve ser visto não apenas como um imperativo moral e político – o que é – mas também deve ser entendido como um investimento económico sensato. Há muitas evidências de que “a educação compensa”. Foi demonstrado que um único dólar investido em educação nos níveis primário e secundário gera cerca de US$ 2,50 em rendimentos brutos adicionais ao longo da vida em países de renda média-baixa e até US$ 5,00 em países de renda baixa – ou seja, um retorno de 500% sobre investimento. E estes são apenas os retornos privados. Se somarmos o impacto económico dos benefícios indirectos da educação, descobriremos, por exemplo, que cada US$ 1 gasto em intervenções de desenvolvimento na primeira infância renderia cerca de US$ 13 em retornos económicosiii[iii].

Mas se sabemos disto, por que, então, os países não investem mais em educação? “Não há espaço fiscal (orçamento)” – diria o ministro das Finanças. Mas então, por que eles não buscam uma reformulação progressiva dos seus sistemas tributários que possa aumentar a relação imposto/PIB e abrir mais espaço fiscal para o financiamento da educação? Se a educação tem uma taxa de retorno tão alta, deveria fazer sentido económico financiá-la. Então por que não?

5. Educação e armadilhas da pobreza

Para responder a esta pergunta, precisamos entender que existe uma relação muito forte entre o tipo de desenvolvimento, o tipo de economia de um país e o tipo de educação que o acompanha; e é uma relação que vai nos dois sentidos.

Ao colocarmos em termos bem simples, quando um país é altamente desigual e tem uma grande oferta de mão-de-obra muito barata, ele pode estar num equilíbrio de baixo nível ou numa armadilha de pobreza. O tipo de investimento mais facilmente atraído pela abundância de mão-de-obra barata é aquele tipicamente pouco sofisticado, com baixa intensidade de capital, baixa produtividade e pouca necessidade de capital humano. Mas, ainda assim, podem ser muito rentáveis, não porque contribuam com o aumento da produtividade, mas pelo seu acesso contínuo a recursos humanos e naturais de baixo custo. Sem a necessidade de mão-de-obra cada vez mais qualificada, há pouco incentivo dos sectores económicos para o aumento de impostos para financiar a educação, que é percebida como mero gasto. A situação pode ser ainda mais complicada quando os países envolvem-se na típica competição acirrada, onde desregulam o mercado de trabalho, a exploração de recursos naturais, desvalorizam suas moedas e concedem generosos e perversos incentivos fiscais para reduzir ainda mais os custos e atrair investimentos estrangeiros .

Como muitos autores argumentaram, em países onde prevalecem estas economias extractivas ou de baixa produtividade, o quadro institucional tende a ser fraco e o equilíbrio do poder económico e político é significativamente distorcido para os escalões elevados de renda e riqueza, que novamente tendem a opor-se ao tipo de aumentos progressivos de impostos que seriam necessários para financiar a educação universal de qualidade e o desenvolvimento social em geral.

A educação é a única saída para a armadilha da pobreza, mas as armadilhas da pobreza restringem a capacidade de investir em educação, mesmo que tal investimento faça sentido social e económico a longo prazo. Lucros de curto prazo não permitirão isto. Será preciso visão e, mais do que visão, será preciso um movimento capaz de alterar o equilíbrio do poder, para que um país liberte-se destas armadilhas da pobreza e embarque no ciclo virtuoso do desenvolvimento sustentável: aumentar os salários, aumentar a produtividade, expandir e melhorar a educação, e fazer uso sustentável dos recursos naturais e ao fortalecer as instituições políticas.

Para alcançar o desenvolvimento sustentável, os países menos desenvolvidos devem transformar a educação, mas, por sua vez, para transformar a educação, eles também devem libertar-se das armadilhas perversas da pobreza e das estratégias da competição acirrada. Todo país precisa e merece uma boa educação para seu povo – todo o seu povo. Todo país precisa e merece um desenvolvimento justo e sustentável.

No fundo, trata-se de ética. E é sobre política. Trata-se de mudar o equilíbrio do poder e escapar das armadilhas da pobreza. Trata-se de reverter a dinâmica de aumento da desigualdade. E sim, a educação deve desempenhar um papel fundamental nesta transformação.

Obrigado.

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[i] UNESCO, World Bank: Education Finance Watch 2022, United Nation Statistics.

[ii] Ibid.

[iii] World Economic Forum (2022), Catalyzing Education 4.0 Investing in the Future of Learning for a Human-Centric Recovery

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A Campanha Global pela Educação (GCE) é um movimento da sociedade civil que tem como objectivo acabar com a exclusão na educação. A educação é um direito humano básico, e a nossa missão é assegurar que os governos actuam agora para garantir o direito de todos a uma educação pública gratuita e de qualidade.