A large banner saying "Brazil unites for education" is extended by protesters on Avenida Brigadeiro Faria Lima, Rio, Brazil during a mass mobilisation in May 2019.

Mesmo sob ameaça de uso das Forças Armadas, estudantes do Brasil levantam suas vozes contra a censura e a precarização do direito à educação

Neste World Humanitarian Day, afirmamos que as mobilizações lideradas por estudantes, profissionais da educação e sociedade civil que aconteceram em todo o país no dia 13 de agosto são uma forte reação e um sinal de resistência a um governo que vem dando passos largos para um passado não desejado.

O momento é de crise na democracia brasileira. Não que crises já não tenham sido por nós vividas em outros momentos da história. Desde 1889, com a proclamação da República, o país passou por duas recessões democráticas, Era Vargas (1930-1945) e Regime Militar (1964-1985). Vivemos sob nossa 6ª Constituição – datada de 1988 – e, desde a redemocratização estabelecida a partir das eleições diretas de 1989, somente dois dos cinco presidentes eleitos até hoje conseguiram finalizar os seus mandatos (Fernando Henrique Cardoso e Luíz Inácio Lula da Silva).

O que temos assistido, contudo, desde o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, única mulher a governar o Brasil até aqui, é um sucessivo processo de enfraquecimento das bases e instituições democráticas do país, e de retrocesso no campo das conquistas sociais alcançadas com muito esforço pela sociedade civil organizada. Nunca havíamos avançado tanto em termos de fortalecimento das instituições democráticas e de avanço nos direitos sociais e nunca vimos retrocessos a tão largos passos.

O governo provisório de Michel Temer, substituto de Dilma Rousseff, foi o símbolo do estabelecimento de um novo programa econômico, cuja principal marca e ameaça aos direitos sociais foi a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que estabeleceu um novo regime fiscal determinando que nenhum investimento nas áreas sociais poderá ser superior ao reajuste inflacionário por um período de vinte anos, ou seja, um congelamento de recursos para educação, saúde e assistência social até 2036.

Fora o absurdo de se determinar a paralisação da progressão do acesso a direitos sociais com qualidade, prerrogativa basilar dos direitos humanos positivos e da própria Constituição Federal Brasileira, para qualquer conhecedor mínimo da rule of law é de se assustar um governo que decide por um contingenciamento orçamentário em nome de futuras gerações de tomadores de decisão – por 20 anos – e sob o lastro da Lei Magna do país.

Catastróficas decisões orçamentárias para a educação

Em um clima ascendente de instabilidade política e econômica, vieram as eleições de 2018 com a vitória de Jair Messias Bolsonaro. Chega ao poder um grupo de caráter bastante populista, composto por membros de grupos ultraliberais econômicos defensores de uma vasta redução Estado, simultaneamente a grupos ultraconservadores militantes de um Estado mais atuante na defesa dos valores familiares e de forte apelo fundamentalista religioso. Um novo governo que, em oito meses de atuação, tem acumulado ameaças beligerantes às organizações da sociedade civil e ações desastrosas especialmente nas áreas de educação e meio ambiente. Um governo que tem atacado o avanço de pautas identitárias, se posicionando contra a igualdade de gênero – e até censurando a palavra – em suas empreitadas nacionais e internacionais.

Do ponto de vista do financiamento, de acordo com levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), de 2014 a 2018 houve uma redução de 13,5% no orçamento para a educação e, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro anunciou um contingenciamento de 5% das verbas aprovadas para o ano, o que resultou no congelamento de 5,84 bilhões de reais da área de ensino superior e fomento à pesquisa, acendendo um sinal de alerta nas universidades públicas federais e nos milhares de pesquisadores brasileiros que recebem bolsas para pesquisa.

A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto ”

Uma frase de Darcy Ribeiro, um dos grandes intelectuais brasileiros, diz que “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. Isso mostra que, de fato, nunca houve uma real preocupação dos nossos governantes na priorização de políticas públicas para a educação que garantissem um ensino público de melhor qualidade. Nosso país é marcado por uma profunda desigualdade social que pode ser vista em escolas espalhadas por diversas regiões onde é impossível encontrar um computador com acesso à internet, laboratórios de ciência, quadras poliesportivas e, em muitos casos, até mesmo luz elétrica, saneamento básico ou até mesmo água potável.

Mesmo sendo impossível negar o notável avanço da área durante os governos de Lula e Dilma, em que novas leis e políticas públicas de educação e assistência social tiraram milhões de pessoas da pobreza e chegaram perto de universalizar o acesso ao ensino fundamental, ainda existem 1,5 milhões de crianças e adolescentes fora da escola no Brasil e estamos longe de atingir as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação de 2014 de forma a alcançar em dez anos uma educação de qualidade pública, gratuita e acessível à todos brasileiros e residentes no país.

Um clima de ameaça e censura

Para além das catastróficas decisões orçamentárias para a educação, há um profundo obscurantismo e anti-cientificismo – por mais paradoxal que isso possa parecer – na liderança do Ministério. O primeiro ministro de Bolsonaro, Vélez Rodrigues, era dotado de uma profunda crença de que as universidades e escolas brasileiras supostamente foram tomadas por “ativistas marxistas que doutrinam seus alunos para seguirem as ideias comunistas”.

Rodríguez, em poucos dias de comando, realizou dezenas de demissões, propôs a troca dos livros didáticos utilizados nas escolas, instaurou uma comissão para examinar as questões do Exame Nacional do Ensino Médio – de forma a livrá-lo de possíveis doutrinações -, e, em sua medida mais polêmica e inacreditável, emitiu um comunicado à todas as escolas do país determinando que professores e alunos hasteassem a bandeira e cantassem o hino nacional diariamente, lessem uma carta contendo o slogan de campanha de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, e gravassem vídeos desses momentos para enviar ao ministério. Além disso, incentivou a criação de tribunais pedagógicos nas escolas em que os próprios estudantes deveriam fiscalizar os professores que estivessem realizando “doutrinações ideológicas”, gravando inclusive vídeos e áudios das aulas.  A medida foi cancelada após a gigantesca repercussão negativa e, após intensa pressão popular, Rodríguez permaneceu somente 96 dias no cargo. Apesar disso, o clima de ameaça e censura segue pairando nas salas de aula de todo o país. Professores têm tido medo e têm adoecido.

Militarização de escolas

O novo governo brasileiro, sob Jair Bolsonaro, além do amplo apoio dos setores conservadores e de figuras como Rodríguez, também é marcado por uma tutela direta de oficiais militares, a classe mais representada nas nomeações do presidente para os cargos do governo. Integra o planejamento do Ministério a expansão do processo de militarização das escolas, que se acentuou a partir de 2014 e só tem crescido até aqui. Segundo levantamento realizado por jornalistas e da Campanha Brasileira, de 2013 a 2018, saltou de 39 para 122, um aumento de 212%, o número de escolas públicas estaduais militarizadas, ou seja, que passaram a ser administradas pela pasta de segurança pública estatal, pelo Exército nacional e as polícias militares estaduais.

Além de representar mais um fator do pilar autoritário do novo governo, a crescente militarização das escolas públicas, no entanto, é inconstitucional por diversas perspectivas e, além disso, viola os tratados internacionais assinados pelo Brasil.

Ao substituir Rodríguez por um novo ministro da Educação, Bolsonaro optou por nomear alguém tão controverso quanto o antigo ministro. Abraham Weintraub tem praticado um discurso beligerante de confronto aos, denominados por ele, “militantes de esquerda da educação” e recentemente apresentou uma proposta de privatização em massa para as universidades públicas federais como uma de suas prioridades de gestão.

Declarações do ministro e do próprio presidente da República afirmaram que os estudantes e professores praticavam “balbúrdia” dentro das universidades públicas, “não sabiam sequer a tabuada”, eram “vagabundos”, entre outras declarações mais do que inadequadas e falsas.

Um clima de insegurança e ameaça aos direitos humanos

O ápice desse processo de perseguição, censura, ameaças e incentivos à violência culminou na semana passada, em que o atual ministro solicitou ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que autorizasse o emprego da Força Nacional de Segurança Pública em ações de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio nos dias 7, 12 e 13 de agosto de 2019. É claramente uma atitude clara de repressão às manifestações convocadas por movimentos estudantis e entidades de classe para o dia 13 de agosto. E o Ministério da Justiça, sob a égide do Ministro Sérgio Moro, juiz ícone do processo de prisão do ex-presidente Lula, deliberou em favor.

O clima de insegurança, de ameaça latente e de agressões aos direitos humanos no Brasil e de violência que tem custado a morte de defensores de direitos humanos, como o caso de Marielle Franco – vereadora assassinada a tiros no Rio de Janeiro, cujas parcas investigações até aqui relacionam o crime a milícias ligadas a familiares de Bolsonaro – é intenso e se agrava a cada dia.

É importante que todos saibam que uma enorme parcela da população brasileira e, especialmente, os jovens não estão assistindo imóveis às crescentes ameaças do novo governo. Os últimos anos foram marcados por sucessivos protestos por todo o país e, por mais que pareça existir uma outra grande parcela de brasileiros que apoiem o atual governo, um número cada vez maior de pessoas tem lutado pela garantia dos direitos sociais conquistados até aqui.

Movimentos estudantis lideram a luta pelo direito à educação

Movimentos estudantis e entidades representativas dos profissionais da educação – como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – têm assumido um lugar importante de luta pelo direito à educação e mobilizando jovens, adolescentes e a sociedade em geral para protestar e resistir. E organizações da sociedade civil, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, têm se preocupado em resistir no Congresso Nacional, nacional e localmente, assim como em denunciar às estâncias internacionais as violações de direitos praticadas pelo Estado e colhendo resultados importantes de recomendações da ONU e OEA contra os projetos praticados até aqui.

A comunidade internacional deve tomar uma posição

Nossos estudantes, profissionais da educação e ativistas passam por um momento delicado de vigilância, censura e repressão. Nesse Dia Mundial Humanitário, demonstramos a frágil situação que vivemos ao passo que seguimos na linha de frente resistindo a tantos ataques – alguns que, além de restringir os direitos econômicos, sociais e culturais, ameaçam nossas liberdades civis e políticas e, em recentes medidas, até nossa própria integridade física. Nesse Dia Mundial Humanitário, é urgente e necessário que a comunidade internacional esteja ciente dessa situação, se posicione e leve adiante ações concretas que possam pressionar para a proteção dos ativistas e dos direitos humanos no Brasil.

E, especialmente nesta data que em 2019 comemora as mulheres dedicadas às ações humanitárias (#WomenHumanitarians), pedimos que se unam às vozes das mulheres de um Brasil que cada vez menos se envergonha e cujos governantes se orgulham em terem atitudes machistas, misóginas, que vetam o posicionamento afirmativo pela igualdade de gênero e que, pior, travam um discurso que nega e incentiva a violência contra a mulher, no 5º país com mais mortes violentas de mulheres no mundo.

O Brasil sofre. Mas o Brasil resiste, nos braços erguidos e no caminhar constante de seus jovens, professores e ativistas. Venham erguer os braços conosco. Venham caminhar conosco.

#WorldHumanitarianDay

Authors: Andressa Pellanda e Gabriel Morais

Andressa PellandaAndressa Pellanda is executive coordinator of the Brazilian Campaign for the Right to Education, she is a master’s student in International Relations (IRI / USP) and she holds a postgraduate degree in Political Science (FESP / SP) and a Bachelor of Social Communication, with a degree in Journalism (ECA / USP). Andressa conducted academic exchange in contemporary history and theory of international relations (Université Paris-Sorbonne IV / France) and she is specialist in Diplomatic Negotiation Skills (Diplo Foundation / Switzerland). Andressa researches advocacy and educational policies, especially the themes of political education, quality, funding, international education processes and actors, and mechanisms of privatization of education.

Gabriel MoraisGabriel Morais is project officer of the Brazilian Campaign for the Right to Education, he holds a bachelor’s degree in theology (São Paulo Baptist Theological College), is studying a B.A. in Social Sciences (FESP / SP) and is a computer technician (Albert Einstein State Technical School). He has complementary training in Design thinking and creative leadership (ESPM) and Storytelling (Casa do Brincar).

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A Campanha Global pela Educação (GCE) é um movimento da sociedade civil que tem como objectivo acabar com a exclusão na educação. A educação é um direito humano básico, e a nossa missão é assegurar que os governos actuam agora para garantir o direito de todos a uma educação pública gratuita e de qualidade.